quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

OBRAS DE MISERICÓRDIA CORPORAIS
Dom José Francisco Rezende Dias, Arcebispo Metropolitano de Niterói (RJ).
___________________________________________________

A civilização se ergueu ao lado de rios. Ela acompanhou a corrente dos rios. Quantos nomes nós aprendemos ao longo do ensino fundamental! O Tigre, o Eufrates, o Ganges… Muito mais do que à geografia, eles pertencem à história. Cada um deles conta histórias. Cada um deles construiu a História.

Imagine que o Tigre e o Eufrates viram Abraão passar por ali, o Nilo transportou o cesto de Moisés, o Jordão batizou Jesus. É a História! Imagine se pudéssemos ouvir do rio Paraíba como foi e o que ele sentiu quando a imagem da Virgem emergiu na rede dos pescadores. É a História da fé!


Muito mais do que águas, os rios transportam histórias, banham histórias, edificam histórias.


É assim com a misericórdia. As águas da misericórdia correm nos rios do pensamento e da ação. Seria pouco, se permanecessem apenas no pensamento, seria pouco, se ficassem só na ação. As águas precisam das beiras dos rios, os rios não são rios sem as águas.

É assim com as obras de misericórdia: elas são espirituais e corporais. Quais as mais importantes? Todas. Todas comportam as águas da misericórdia, todas transformam histórias, redimem histórias. A misericórdia é a redenção da História do Mundo. Sem ela, o mundo não passaria de uma argamassa de sangue, suor e lágrima, sem sentido algum.

O Papa Francisco, neste Ano da Misericórdia, lembrou que a mensagem da Misericórdia Divina constitui um programa de vida muito concreto e exigente, porque implica obras. “Eu tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era estrangeiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; doente, e me visitastes; estive na prisão, e fostes me ver. Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer, ou com sede, e te demos de beber, e quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos, ou nu, e te vestimos, e quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos te ver? Respondendo, o Rei lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25, 35-40).

Obras não são palavras. A palavra tranquilidade não é a tranquilidade. Uma obra é o pensamento em ação. Crer é acreditar com as mãos.
São sete as obras de misericórdia espirituais e sete, as corporais.

Comecemos pelas obras de misericórdia corporais. Comecemos pelo corpo, que é onde tudo começa desde que começou.

As Obras de Misericórdia Corporais são:

1) DAR DE COMER A QUEM TEM FOME. “Eu tive fome, e me destes de comer” (Mt 25, 35). Grande parte do mundo vive em condições de fome. Nem a ONU nem a FAO conseguiram desenvolver políticas para combater a fome.

E o Evangelho continua insistindo, hoje como sempre: “Quem tiver muita roupa partilhe com quem não tem, e faça o mesmo quem tiver alimentos” (Lc 3, 11). Seis vezes é o número em que o relato da multiplicação dos pães é contado e repetido. ”Dai-lhes vós mesmos de comer” (Lc 9, 13). Quando um texto se repete, precisamos estar atentos para seu caráter de urgência e dificuldade.

2) DAR ABRIGO AOS PEREGRINOS. Jesus foi um desabrigado já em seu nascimento. “As aves do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça” (Mt 8,20).

Seria ingenuidade de nossa parte acolher dentro de casa todo e qualquer morador de rua. Infelizmente, a época do “politicamente correto” também é a época do “cristãmente incorreto”. É preciso, sim, que se ouça a voz de Deus no imperativo ético de Mateus, e na urgência que clama nas ruas. Enquanto cidadãos, somos impelidos a exigir do poder público que ele faça a parte pela qual cobra impostos. Entre os quatro deveres do poder público está o de uma política habitacional.

Como comunidade cristã, somos chamados a contribuir econômica e voluntariamente nos serviços desta obra. É impossível continuar a ver pessoas dependuradas nos morros à espera da próxima chuva que os irá desalojar. Mas, o quê? Conversem. Troquem ideias. O Filho de Deus nunca deixou de estar onde dois ou três se reuniram em seu Nome, soprando o Espírito, gerando ideias e ideais.

3) ASSISTIR AOS ENFERMOS. O Evangelho é praticamente anúncio do Reino e cura. A cura é a demonstração de que o Reino já chegou. Jesus acolhe e cura os doentes, às vezes, no entardecer; outras, indo à casa do enfermo (Jo, 4, 46-53; Mt 8, 14-15); várias vezes, quebrando o preceito-tabu do Sábado. Jesus foi pura misericórdia para com os doentes. Muito mais que curar, Jesus foi a cura.

A assistência aos doentes começa na família, nas enfermidades prolongadas e, às vezes, irreversíveis: cânceres, paralisias, a terrível microcefalia, os soropositivos. Ela se estende aos hospitais, asilos, residências terapêuticas. Disseram-me que o mais difícil é enfrentar os dependentes químicos, doentes de uma patologia que se nega a ser curada. Os enfermos são os mais marginalizados entre os que foram colocados à margem. Eles mesmos se colocam à margem, na solidão e no esquecimento. Nunca diga a um enfermo crônico que você entende o que se passa com ele. Só ele entende, porque só ele passa do jeito como ele está passando. Diga que você compartilha a dor porque você é humano, e os humanos podem compartilhar alegrias e dores, mesmo sem saber suas intensidades.

4) DAR DE BEBER AOS SEDENTOS. “Todo aquele que der ainda que seja somente um copo de água fresca a um destes pequeninos, porque é meu discípulo, em verdade eu vos digo: não perderá sua recompensa” (Mt 10, 42).

Não lutamos por recompensas. A recompensa a que Jesus se refere é a força da própria virtude de quem faz o que deve ser feito. Essa virtude não é um dever, mas uma libertação; não é um ideal, é uma plenitude. É a vida em ato e em verdade.

A Campanha da Fraternidade 2016 está nos alertando para a realidade do saneamento básico. Pense em quem ainda não tem água encanada em casa, em quem vive nos rincões da seca, em quem anda quilômetros para buscar baldes de água em açudes, em quem depende de caminhões-pipa, num país de contrastes sociais que beiram o escândalo. Nas bem-aventuranças, Jesus fala da sede de justiça (Mt 5,6). É essa a sede que deve ser saciada, naqueles a quem não falta o elemento básico da vida, a água.

5) VESTIR OS NUS. “Quem tem duas túnicas dê uma ao que não tem” (Lc 3,11). “Se a um irmão ou a uma irmã faltarem roupas e o alimento cotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, mas não lhes der o necessário para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma” (Tg 2, 15-17).
Palavras duras, severas, cortantes, iluminadoras. Claras como o raio que ilumina a noite escura. Acho que nem preciso acrescentar nada. Qualquer outra palavra correria o risco de embaçar a força da Palavra.

6) SOCORRER OS PRISIONEIROS. Ficará à direita de Deus, no grupo dos bem-aventurados, aquele que visitou os que estavam na prisão (Mt 25, 36).
Hoje o acesso nos presídios não é livre, há o rigor da triagem para visitas a detentos. Nossas igrejas ainda são tímidas, diante da necessidade de uma pastoral carcerária efetiva e dinâmica. Os detentos só são lembrados em época de eleição, com falsas promessas de presídios com maior dignidade. Só quando acontecem rebeliões é que os presos aparecem na mídia. Sua realidade crua logo cai no esquecimento.

Visitar os prisioneiros, talvez seja a obra de misericórdia mais difícil.
Nesse sentido, mais uma vez, ganham as mulheres. Visite um presídio em dia de visita. Se o presídio for masculino, você encontrará multidões de esposas, namoradas e mães, com sacolas de comida e roupas, tudo o que o presidiário mais gostar. Se o presídio for feminino, a fila externa dos homens será pequena. A gratuidade, a atenção, a benevolência – todos os braços do amor – são femininos.

Socorrer os prisioneiros, também se estende ao socorro às famílias dos presidiários, tanto materialmente quanto ajudando-as a superarem os preconceitos, que crescem na medida em que são escondidos.

7) ENTERRAR OS MORTOS. “Eu sou a ressurreição e a vida. Crês nisso, Marta?” (Jo 11,25-26). Crer na ressurreição e na vida eterna faz parte da nossa profissão de fé. Jesus acreditava. Não é opcional.

O Novo Catecismo da Igreja Católica assim diz: “Os corpos dos defuntos devem ser tratados com respeito e caridade, na fé e na esperança da ressurreição. O enterro dos mortos é uma obra de misericórdia corporal que honra os filhos de Deus, templos do Espírito Santo” (CIC § 2300).

A Igreja permite a cremação dos corpos. A Igreja incentiva a doação dos órgãos, sobretudo, se desejada pelo próprio doador em vida. Em todos os campos do saber científico, na área da saúde, existem corpos que são dissecados para o nobre conhecimento de salvar vidas. Nada desses itens significa desrespeito ao corpo. O corpo continua santuário do Espírito, e irá permanecer assim, mesmo enterrado, mesmo cremado, mesmo dissecado para o bem de outros, sobretudo, quando sobrevive e faz a vida continuar nos portadores que receberam órgãos transplantados. Que emoção, quando as famílias de doadores e transplantados se encontram! Nada paga esse amor, porque não há aqui moeda que pague. Só na eternidade!

Os especialistas sabem que os preceitos do Evangelho teceram, como linha invisível, mas forte, todos os avanços do humanismo moderno. Tanto os ideais de liberdade, igualdade, justiça e fraternidade, quanto as ideias contidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos brotaram da cepa do Evangelho.

Se fossem levadas a sério, vividas como regras norteadoras de vida e verdadeiras diretrizes, as sete obras de misericórdia corporais seriam ainda mais revolucionárias do que todas as teses revolucionárias de todos os movimentos revolucionários de todos os tempos. Elas trariam uma verdadeira revolução, sem sangue, nem lágrima, nem dor. A revolução do amor.

Abençoo-os e peço que rezem comigo. A revolução do amor tem seus alicerces na oração fervorosa. Fiquem com Deus e a Virgem, sempre bendita entre todas e mãe da misericórdia!
___________________________________________________
http://arqnit.org.br/arqnitfinal/obras-de-misericordia-corporais/

Nenhum comentário:

Postar um comentário