Antes de tudo, duas observações:
(1) A Palavra de Deus, neste
Domingo, apresenta-nos um contraste muito forte entre escuridão e luz:
escuridão da noite do Pai Abraão e luz do Cristo transfigurado;
(2)
Chama atenção, num tempo tão austero como a Quaresma, um evangelho tão
esfuziante como o da Transfiguração. Não cairia melhor na Páscoa, este
texto? Por que a Igreja o coloca aqui, no início do tempo quaresmal?
Comecemos pela primeira leitura. Aí, Abraão nos é apresentado numa
profunda crise; Deus lhe havia prometido uma descendência e uma terra e,
quase vinte e cinco anos após sua saída de sua pátria e de sua família,
o Senhor ainda não lhe dera nada, absolutamente nada!
Numa noite
escura, noite da alma, Abraão, não mais se conteve e perguntou: “Meu
Senhor Deus, que me darás?” (Gn 15,2) Deus, então, “conduziu Abrão para
fora e disse-lhe: ‘Olha para o céu e conta as estrelas, se fores capaz!
Assim será a tua descendência!” Deus tira Abraão do seu mundozinho, de
seu modo de ver estreito, da sua angústia, e convida-o a ver e sentir e
compreender com os olhos e o coração do próprio Deus. “Abrão teve fé no
Senhor”. Abraão esperou contra toda esperança, creu contra toda
probabilidade, apostando tudo no Senhor, apoiando Nele todo seu futuro,
todo o sentido de sua existência! Abraão creu! Por isso Deus o
considerou seu amigo, “considerou isso como justiça!” E, como recompensa
Deus selou uma aliança com nosso Pai na fé: “’Traze-me uma novilha, uma
cabra, um carneiro, além de uma rola e uma pombinha’. Abrão trouxe tudo
e dividiu os animais ao meio. Aves de rapina se precipitaram sobre os
cadáveres, mas Abrão as enxotou. Quando o sol ia se pondo, caiu um sono
profundo sobre Abrão e ele foi tomado de grande e misterioso terror”.
Abrão entra em crise: no meio da noite – noite cronológica,
atmosférica; noite no coração de Abrão – no meio da noite, as aves de
rapina ameaçam, e o sono provocado pelo desânimo e a tristeza, rondam
nosso Pai na fé... Deus demora, Deus parece ausente, Deus parece brincar
com Abraão! Tudo é noite, como muitas vezes na nossa vida e na vida do
mundo! Mas, ele persevera, vigia, luta contra as aves rapineiras e o
torpor... E, no meio da noite e da desolação, Deus passa, como uma tocha
luminosa: “Quando o sol se pôs e escureceu, apareceu um braseiro
fumegante e uma tocha de fogo... Naquele dia, o Senhor fez aliança com
Abrão”.
Observemos o mistério: Deus passou, iluminou a noite; a
noite fez-se dia: “Naquele dia, Deus fez aliança com Abrão!” Abraão,
nosso Pai, esperou, creu, combateu, vigiou e a escuridão fez-se luz,
profecia da luz que é Cristo, cumprimento da aliança prometido pelo
Senhor! “O Senhor é minha luz e salvação; de quem eu terei medo? O
Senhor é a proteção da minha vida; perante quem tremerei?” Eis o
cumprimento da Aliança com Abraão: Cristo, que é luz, Cristo que hoje
aparece transfigurado sobre o Tabor!
Fixemos a atenção no
evangelho, sejamos atentos aos detalhes: Jesus estava rezando – “subiu à
montanha para rezar” - e, portanto, aberto para o Pai, disponível, todo
orientado para o Senhor Deus: Cristo subiu para encontrar Seu Deus e
Pai! E o Pai O transfigura. Sim, o Pai!
Recordemos que é a voz do
Pai que sai da nuvem e apresenta Aquele que brilha em luz puríssima:
“Este é o Meu Filho, o Escolhido!” E a Nuvem que o envolve é sinal do
Espírito de Deus, aquela mesma Glória de Deus que desceu sobre a
Montanha do Sinai (cf. Ex Ex 19,16), sobre a Tenda de Reunião no deserto
(cf. Ex 40,34-38), sobre o Templo, quando foi consagrado (cf. 1Rs
8,10-13) e sobre Maria, a Virgem (cf. Lc 1,35). É no Espírito Santo que o
Pai transfigura o Filho! Na voz, temos o Pai; no Transfigurado, o
Filho; na Nuvem luminosa, o Espírito!
E aparecem Moisés e Elias,
simbolizando a Lei e os Profetas. Aqui, não nos percamos em loucas
divagações e ignóbeis conclusões, como os reencarnacionistas, que de
modo louco, querem provar com este texto que os mortos se comunicam com
os vivos! Trata-se, aqui, de uma visão sobrenatural, não de uma aparição
fantasmagórica e natural!
Moisés e Elias, que “estavam conversando
com Jesus... sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém”. Aqui é
preciso compreender! Um pouco antes – Lucas diz que oito dias antes (cf.
9,28) – Jesus tinha avisado que iria sofrer muito e morrer; os
discípulos não compreendiam tal linguagem! Agora, sobre o monte, eles
veem que a Lei (Moisés) e os Profetas (Elias) davam testemunho da morte
de Jesus, de Sua Páscoa! Sua paixão e morte vão conduzi-Lo à glória da
Ressurreição, glória que Jesus revela agora, de modo maravilhoso! Assim,
a fé dos discípulos, que dormiam como Abraão, é fortalecida, como o foi
a de Abraão, ao passar a Glória do Senhor na tocha de fogo! A
verdadeira tocha, a verdadeira luz que ilumina nossas noites sombrias e
nossas dúvidas tão persistentes é Jesus!
Mas, por que este
evangelho logo no início da Quaresma? Precisamente porque estamos
caminhando para a Páscoa: a de 2016 e a da Eternidade.
Atravessando a
noite desta vida e o combate quaresmal, estamos em tempo de oração,
vigilância e penitência! A Igreja, como Mãe, carinhosa e sábia, nos
anima, revelando-nos qual o nosso objetivo, qual a nossa meta, o nosso
destino: trazer em nós a imagem viva do Cristo ressuscitado,
transfigurado pelo Espírito Santo do Pai.
Escutemos São Paulo: “Nós
somos cidadãos do Céu. De lá esperamos o nosso Salvador, o Senhor Jesus
Cristo. Ele transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante
ao Seu corpo glorioso. Assim, meus irmãos, continuai firmes no Senhor!”
Compreendem? Se mantivermos o olhar firme naquilo que nos aguarda – a
Glória de Cristo –, teremos força para atravessar a noite desta vida e o
combate da Quaresma.
Somos convidados à perseverança de Abraão, ao
seu combate na noite, à vigilância e à esperança, somos convidados a não
sermos “inimigos da cruz de Cristo, que só pensam nas coisas terrenas”,
somos convidados a viver de fé, a combater na fé!
Este é o combate
da Quaresma, este é o combate da vida: passar da imagem do homem velho,
com seus velhos raciocínios e sentimentos, ao homem novo, imagem do
Cristo glorioso! Se formos fiéis, poderemos celebrar a Páscoa deste ano
mais assemelhados ao Cristo transfigurado pela glória da Ressurreição e,
um dia, seremos totalmente transfigurados à imagem bendita do Filho de
Deus, que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina na glória
imperecível. Amém!
Fonte
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